O Fisco ganha um superpoder com a entrada em vigor da nova Lei de Falências (nº 14.112, de 2020) neste fim de semana. Poderá pedir a falência da empresa em recuperação judicial caso haja descumprimento de parcelamento fiscal ou acordo. A medida também valerá para casos de esvaziamento patrimonial – estratégia adotada para se evitar ou postergar o pagamento de dívida tributária.
O superpoder dado às esferas federal, estadual e municipal chamou mais a atenção dos contribuintes depois de o presidente Jair Bolsonaro vetar as contrapartidas negociadas para as empresas em recuperação. Eram benefícios fiscais aceitos pelo Ministério da Economia.
O volume de recursos em jogo é grande. Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o estoque da dívida das empresas em recuperação judicial está em R$ 109,6 bilhões. Desse total, R$ 96,2 bilhões estão em situação irregular – o contribuinte não ofereceu qualquer solução de pagamento ou garantia à dívida.
Em 2020, foram apresentados, em todo o país, 1.179 pedidos de recuperação. No ano anterior, haviam sido 1.387. Um dos motivos para a queda, de acordo com a Serasa Experian, foi a opção de muitos empresários por esperar a nova lei. Havia expectativa do mercado.
As novas regras entram em vigor amanhã. A possibilidade de a Fazenda Nacional poder pedir a falência se constatar esvaziamento patrimonial é um dos pontos que mais preocupa os especialistas. “Esse trecho da lei é muito subjetivo. Não existe um critério balizador. Preocupa e muito a forma como o Fisco vai se utilizar disso”, diz Ana Carolina Monteiro, do escritório Kincaid Mendes Vianna.
Advogados destacam ainda outro ponto que envolve o patrimônio das empresas. O juiz perdeu poder. Atualmente, a jurisprudência permite a ele impedir a constrição de bens essenciais para o funcionamento de uma companhia. A nova lei, porém, diz que o magistrado tem competência para apenas determinar a substituição do bem que foi bloqueado para pagamento de dívida tributária.
Essas questões fiscais ficaram mais pesadas para as empresas depois da sanção da lei, no dia 24 de dezembro. O projeto de lei que foi aprovado pelo Congresso previa, por exemplo, a inclusão do artigo 50-A na Lei de Recuperação Judicial e Falências (nº 11.101, de 2005). Esse dispositivo aliviaria a tributação sobre o perdão da dívida de credores particulares.
As empresas em recuperação, nas negociações com os seus credores, geralmente obtém descontos generosos. Nesses casos, se a dívida original era de R$ 1 milhão e, com o desconto, ficou em R$ 600 mil, por exemplo, a companhia é obrigada a tributar a diferença, de R$ 400 mil. Isso ocorre porque o valor referente ao perdão da dívida tem de ser contabilizado como receita.
O texto aprovado, nessas situações, liberava as empresas do pagamento de PIS e Cofins e permitia o uso de prejuízo fiscal para pagar o Imposto de Renda (IR) e a CSLL. Hoje, as empresas até podem utilizar o prejuízo fiscal, mas só até 30% do valor do débito.
Um outro artigo, o 6-B, também permitia o uso de prejuízo fiscal – sem qualquer limitação de valores – para pagar a tributação que incide sobre os ganhos que as empresas em recuperação têm com a venda de bens e direitos. Com o veto do presidente, as companhias, pela regra atual, continuarão tendo que respeitar o limite de 30% ao usar o prejuízo fiscal.
“Essas medidas aliviariam muito. As empresas nessa situação, que são deficitárias, acabam acumulando um caminhão de prejuízo fiscal. O saldo é muito relevante. Por isso, os vetos a esses dispositivos acabaram provocando uma frustração geral”, diz Luis Henrique Costa, sócio da área tributária do BMA Advogados.
A Presidência da República, ao justificar os vetos, afirmou que as medidas acarretariam renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que estivesse acompanhada de estimativa de impacto orçamentário e financeiro. Essa situação, informou em nota direcionada ao Congresso, violaria a Lei de Responsabilidade Fiscal.
O mercado enxergou os vetos como uma traição do Ministério da Economia. Advogados que auxiliaram no projeto afirmam que o texto foi costurado junto com a equipe econômica do governo. “Tudo foi negociado e todos achavam que havia um consenso. Cada parte cedeu de um lado. Só que com o veto vimos que, no fim das contas, o governo não cedeu nada”, afirma um dos profissionais.
O advogado Ivo Waisberg, sócio do escritório TWK, participou de algumas das reuniões que foram realizadas com a equipe econômica. Ele diz que o direito de a Fazenda Nacional pedir a falência das empresas em recuperação era justificado, pelo próprio governo, em razão das melhorias oferecidas – isenção de tributos e uso do prejuízo fiscal.
“Uma boa parte dos problemas, para as empresas, seria resolvida dessa forma e elas poderiam pagar o restante da dívida de forma parcelada. O governo, com os vetos, acabou ficando com o que recebeu e tirando o que ofereceu. Deixou o sistema desequilibrado”, afirma.
Esses vetos ainda podem ser revertidos pelo Congresso Nacional. Grupos de advogados já estão se mobilizando para tentar manter na lei os benefícios fiscais negociados.
Mattheus Montenegro, sócio do Bichara Advogados, diz que não há renúncia de receita por parte da União em nenhuma das hipóteses que foram vetadas. A eliminação da trava de 30% no uso do prejuízo fiscal, afirma, permite simplesmente que o contribuinte utilize o seu crédito de forma integral. “Trata-se de limite temporal. Esse crédito já pertence ao contribuinte e será utilizado mais cedo ou mais tarde.”
Sobre PIS e Cofins, que, pelo projeto de lei, deixariam de ser cobrados sobre o perdão da dívida, o advogado afirma que é preciso separar as coisas. “Receita contábil se distingue de receita tributável. O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre isso”, afirma Mattheus Montenegro.
O advogado diz que “receita tributável”, sob o prisma constitucional, representa o ingresso financeiro que se integra ao patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições – o que não ocorre com a dívida perdoada. Sem que se verifique essa receita tributável, complementa, não cabe cogitar eventual renúncia por parte da União.
Ficou mantido na lei, no entanto, um novo parcelamento de dívidas federais para as empresas em recuperação. A companhia poderá escolher entre duas modalidades: pagar os seus débitos em até 120 vezes ou usar prejuízo fiscal para cobrir 30% da dívida e parcelar o restante em 84 meses.
“O problema desse parcelamento é que há um risco muito grande. Se a empresa aderir e não conseguir pagar, o Fisco vai pedir a falência dela”, pondera Juliana Bumachar, sócia do Bumachar Advogados Associados.
Advogados que atuam para as empresas em recuperação judicial afirmam, além disso, que existe um projeto de lei (PL nº 2.735) prevendo um programa de regularização tributária em condições muito melhores do que o parcelamento da nova Lei de Falências.
Se aprovado, as empresas poderão obter descontos de 90% em juros, multas e encargos legais. Não haveria, além disso, um número limite de parcelas. As prestações seriam calculadas com base em um percentual da receita bruta. Esse PL teve regime de urgência aprovado no mês de dezembro pela Câmara dos Deputados.
Fonte: Valor Econômico